terça-feira, dezembro 21, 2004

A Dona Lúcia

A D. Lúcia mora no 3º esquerdo. A D. Lúcia domina a técnica do "ouvir sem ser ouvida" e do "ver sem ser vista", na perfeição. Infelizmente ainda está um bocado atrasada no que respeita à técnica do "falar sem ser ouvida".
A D. Lúcia tem um olho maior que outro e o cabelo apresentável uma vez por mês.
De manhã, a D. Lúcia liga a telefonia e ouve a Renascença. Depois abre a janela e entra no horário de trabalho. A D. Lúcia vigia o bairro mas não se deixa vigiar por ninguém. Às vezes, quando não tenho nada que fazer, faço um jogo com ela: abro a janela muito rápido. ela esconde-se. fecho a janela. ela aparece. abro a janela muito rápido. ela esconde-se. Às vezes ficamos assim uns bons dez minutos.
A D. Lúcia é casada com o Sr. Abrantes. A D. Lúcia tem um robe azul e viveu no Brasil. De vez em quando, quando eu chego a casa, eles estão à minha espera no patamar para eu lhes abir uma garrafa de vinho com o saca-rolhas, porque "a força já não é a mesma, menina". A D. Lúcia não gosta muito que o Sr. Abrantes beba vinho, especialmente ao almoço, confessou-me ela um dia.
A D.Lúcia e o Sr. Abrantes vão à ginástica para se poderem queixar durante o resto da semana das pernas e das costas.
Quando eu durmo até ao meio-dia, a D. Lúcia toca à campainha e pergunta se eu estou doente. Gosta muito de tocar à campainha, a D. Lúcia. Principalmente para perguntar se há lixo para levar ao caixote da rua e o que foi o jantar.
A D. Lúcia chama-me qualquer coisa em "-inha" quando está bem disposta e tem o olho mais fechado um bocadinho mais aberto. E pára na escada ou na rua (quando me vê), à espera do meu beijinhho. Eu só dou beijinho quando estou mesmo muito bem disposta ou com um olho mais fechado do que o outro. A D. Lúcia fica sem me falar e sem perguntar se há lixo durante dois dias inteiros, se eu não dou beijinho ou não pergunto pela perna/costas.
A D. Lúcia toma um comprimido azul muito bom para dormir, um amarelo muito bom para a mão esquerda, um vermelho muito bom para o umbigo e um verde muito bom não sabe bem para quê.
A D. Lúcia mete um bocado de medo, especialmente de manhã. Mas com muita paciência, chega a ser uma criatura afável.

A Dona Lúcia é uma espécie em vias de extinção da sociedade lisboeta. E daqui a uns anos até vai fazer falta.

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