domingo, maio 29, 2005

Há coisas fascinantes III - O sonho do sócio

O sócio (nome fictício) é muito sócio. Tem brinco na orelha (brilhante) e "cap" da moda. Meia por cima da calça, trancinhas no cabelo. O corpo pede Kizomba e "uma batida nice" do amigo. Estuda filosofia e está sempre a rir. Tem sempre a piada, a chalaça, o creoulo atrevido. Gosta das "damas", conhece os "truques de engate" e as mini-saias do costume. Às vezes irrita muito. Outras vezes menos. E, vezes há, em que não irrita nada.
Mas isto das gentes já quase não tem brilho, de tantas que são, que se nos cruzam, que nos chateiam, que falta a paciência para histórias sem interesse nenhum. Ideias vazias, aventuras ocas de um dia-a-dia cada vez mais cinzento - mas isto é de mim; "Não, não há consolo, nem espaço suficientemente grande para passear a melancolia de quem está vivo", como dizia o Al Berto.
Mas depois há outro espaço, de contornos baços e frágeis; de verdades muito mais certas, muito mais sedutoras, muito mais....fascinantes. O espaço dos sonhos - como o sonho do sócio.

O sócio estava num quarto feio, com camas de hospital. No quarto ao lado, onde entrou, em várias caminhas iguais, membros do exército nazi (fardados) brincavam, entre risinhos nervosos e abafados pelos cobertores. O sócio não percebeu de imediato o porquê de tanta excitação, mas quando olhou para um canto do quarto, viu. Uma bomba atómica, em contagem decrescente, pronta a explodir. Os meninos nazis, nas suas caminhas, nos seus sorrisos inocentes gritavam agitados " Esconde-te! Vai explodir! Esconde-te debaixo dos cobertores!".
Aqui o sócio pensou "vocês estão todos malucos..!!!" e, entre o pânico e a enorme responsabilidade, avançou para a bomba, para a desactivar. 1 minuto.... Inútil. O tempo avançava sem tréguas, os risinhos persistiam nas caminhas e uma voz, de braços cruzados, no fundo do corredor, dizia "não serves mesmo para nada! nem desactivar uma bomba atómica consegues...". Era a "cota" do sócio, com o mesmo tom com que dizia "não arrumas o quarto, não fazes a cama..."
8 segundos para a explosão final - o sócio corre, foge para o quarto ao lado e.....esconde-se também debaixo dos lençóis, com a sensação de se ser estúpido e inútil até ao fim.

A explosão.

E o sócio, na caminha, sentiu o corpo desintegrar-se; tão depressa, tão devagar; a dor. Sem matéria orgânica. Sem sangue. Sem nada que confirmasse a humanidade que lhe garantiam. Apenas desintegração. Partículas. Agarrado aos lençóis, o sócio desfazia-se, sentindo a mais perfeita e inexplicável morte a transcender o que restava de se ser. E, então

" Eu era a mais pequena partícula....a mais pequena partícula, com a angústia toda do universo em forma de zumbido. Um zumbido constante.....zzzzzzzzzzzzz. E pronto, foi isto."


(e desculpem o brilho, a beleza, o fascínio que posso ter tirado a este sonho, ao contá-lo aqui, assim)

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